segunda-feira, 12 de maio de 2008

crônicas vazias

Samuel não entendia porque tinha que se submeter a tais humilhações. Não fora sempre um funcionário exemplar? Não estava sempre ali quando o rígido relógio do ponto apontava carrancudo a hora certa de servir aos outros e ser explorado como um autômato? Contudo, mesmo assim, mesmo todos sabendo da sua delicada situação, até mesmo os burocratas dos mais altos escalões do setor, seu superior, o respeitável Sr. Lamartan, sempre se fazia de desentendido, ou até mesmo, quem saberia, de fato ignorasse a triste situação do pobre Samuel. Samuel, homem distinto e de valor, tinha que semestralmente viajar para a afastada Carolina do morro, levar comida e dinheiro para sua mãe, que agora permanece sob constante observação médica, pois enlouquecera subitamente e acaba sempre por atirar suas próprias fezes nos passantes, se nenhum médico ou enfermeiro estiver lá para evitar esta curiosa e degradante cena pitoresca. Samuel toda vez tinha que expor detalhada e pormenorizadamente sua triste situação, com os mais sórdidos e humilhantes detalhes explicados com a clareza dos sofistas para o rigoroso e pesado Sr Lamartan liberar sua licença de ausência. "Aqui está, Samuel, mas saiba que lhe faço um grande favor...". E então, com seus olhos embotados e sonolentos, insinua com um aceno garboso e petulante a liberação do infortunado funcionário.

Arrasado, um fantasma que se esconde até mesmo dos olhos de Deus, Samuel se retira da sala do importante Sr. Lamartan e cruza o escritório, dirigindo-se como um morto-vivo para a porta que leva para fora do insípido e viciado recinto. Gracejos e rizadinhas malvadas até poderiam ser ouvidas por Samuel, se sua mente ou sentidos estivessem voltados para alguma coisa senão a profunda e dilacerante frustração que assola seu espírito. Ao ver esta cena, duas vezes por ano, agradeço a algum deus qualquer, que me defende dos infortúnios mais negros da existência.